domingo, 17 de abril de 2011

A ESPERA


As botas batidas, sujas de lama, o corpo caído, moído... os olhos miúdos depois do dia opressivo. Ao chegar em casa, a louça suja, o chão grudando, o calor infernal impedindo de respirar; o gato roçando entre as pernas, soltando seu esnobe felino por onde passa, entre pelos e miados preguiçosos. A geladeira queimada, a maçã podre, o leite azedo... Mais um fim de dia. Dia farto de clientes vorazes, de mamelucos andando pelas ruas e agredindo a moral alheia, dia de carimbos e grampeadores sem fim. De metas não cumpridas, de brigas em silêncio comigo mesma, de brigas ensurdecedoras com outras, com outros, com todos.

Mas eis que apertas a campanhia... eis que chega com teu perfume, me embriaga toda com tua vida cheia de tentar grudar na minha. E gruda, ai como gruda! Grudam-se os corpos cansados, os pensamentos que aqui e ali voavam sem sentido algum... Mas quando se juntam aos poros teus, formam melodia hipnotizante de um baixo qualquer tocado por dedos tímidos de um solitário. Ah, quando chegas tua boca com gosto de sal, teu olhar de menino perguntando sobre meu dia, teu hálito fresco, teu pescoço esguio; quando chegas com tua barba rala, crescendo falha e sorrateira no canto do canto do rosto, contornando com delicadeza o queixo quadrado, lindo; quando corres pra mim com tuas manchinhas vermelhas na pele clara, tão, tão charmosas! Ai, esqueço de tudo, esqueço de mim...

E me enlaças então com tuas mãos grossas, as veias azuladas pulsando ao encontro meu, e afagas, afagas os meus cabelos até eu me render à insanidade de tua companhia. Ignoro então as ações da bolsa, a globalização, o excesso de fast food, as ilhas de lixo, a violência no mundo, os pecados mundanos, a condição das estradas, o preço do sabonete, a fome, as desgraças naturais, o apartamento despencando, a saudade de casa, a saudade da família, a falta de água, a falta de dinheiro, a falta de música boa, a falta de tudo. Embala-me na tua fantasia e me perco nestes olhos pequenos e sonolentos, a me espreitar como se estivessem dormindo, sonhando um sonho bobo.

Nessas horas do dia em que as malésias do corpo não superam a excitação provinda da tua carne, do teu carma, da tua alma a chamar a minha para um enlace divino. Nessas horas em que apertas a campainha e acendes em mim o fogo da juventude; essas horas que fazemos planos distantes, prometemos coisas impossíveis de se cumprir (e rimos com a consciência disso, e prometemos denovo e denovo). Nessas horas que a transformação que provocas em minha vida atinge o ápice, e eu, em inocência de menina moça, gozo da tua presença com a certeza de que ela sempre estará perto da minha.

Não está.


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