Está frio, muito frio. É um costume dessa cidade, gelar as ruas, apressar
os carros e confundir as pessoas. E eu, miniatura dentro da maquete, tenho uma
porção de coisas a fazer que me disseram que eu deveria fazer por que é assim
que as coisas são; e assim elas disseram pois alguém as disse que assim elas
deveriam dizer, porque é assim que as coisas são. Trabalhar pagar contas lavar
a louça estocar comida receber ordens reprimir o sono lavar as partes se
alimentar limpar a casa rolar na cama ver tv escovar os dentes colocar roupas tomar sol acreditar nas pessoas não ter filhos antes da hora e tantas outras coisas que
a vontade mais íntima que está coladinha comigo debaixo dos panos se encolhe e
fica com medo de sair. Minha vontade vermelha é você. Você batendo na minha
porta fria neste exato momento, com a pele clara, os olhinhos doces por debaixo
dos óculos, o casaco preto escondendo o corpo rijo. Encostar minha boca na sua
e sentir seu gosto de menta, seu gosto fresco e novo, e juntar minha saliva na
sua selando a aproximação. Te arrastar escada acima, te acomodar dentro da casa
e me acostumar com essa imagem como se ela fosse um retrato antigo; como se
você sempre estivesse ali, uma escultura
deitada na cama que se move, me pega pela cintura e me faz cócegas.
E então, se essa vontade tivesse vez, se as obrigações não me gritassem
urgentes por serem consumidas, nossos braços e pernas se enrolariam, confundindo
as calças e os sapatos; e seria unha, carne e cabelo pegando, gemendo, amarrando, lambendo, batendo, arranhando, beijando e vivendo numa comunhão
exata. A camisa voaria pra perto da janela que dá para a sacada, as meias
emboladas nos lençóis, meus cabelos embolados nos seus dedos, a língua molhada
fazendo caminhos no corpo todo, arrepiando os ossos e tirando suspiros das
paredes. E a gente iria, pouco a pouco, na paz e na serenidade de sermos o que
somos, descobrindo novas curvas em cada um; novas pintas, novos cheiros, novos
sabores e novos ritmos emanando de todos os lugares de nós. Pularíamos todos os
carnavais que há entre as coxas, dançando o gozo e rodopiando a vida até dar
tontura boa. E eu iria, pouco a pouco, apagando os carros os livros as folhas
os ares as vezes e todas as vezes que eu quis você e ter você não deu. Das
vezes que a vontade se encolheu.
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