quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Desértico





Há tempos não chovia... Agora as gotas caiam do céu cinzento que a pouco fora azul confuso, e o cheiro de terra molhada começava a impregnar o quarto do homem, que, encostado no parapeito da janela aberta, hipnotizava-se com o movimento das gotículas de água se juntando umas nas outras, na vidraça arranhada.


Aquele fenômeno sempre o atraíra. Desde pequeno, com seus quatro ou cinco anos, de aparência franzina e retraída, adorava paralisar seu início de vida e sentar-se perto de algum objeto de vidro exposto à água provinda do céu inundado por solidão e vida - ao mesmo tempo. Agora, passado trinta anos, era daqueles homens fisicamente invejáveis: robusto, alto, de pele genuinamente bronzeada e lisa como pérola; seus dentes perfeitamente alvos expressavam um sorriso descansado, e sua boca corretamente contornada pelo vermelho mais vivo da rosa seduzia mulheres e seus corações; mas seus olhos, tão pão de mel e sequiosos, buscavam algo mais; sentia que sua vida se mantinha em completa aridez, que seus pulmões se enchiam de esperança encardida e nada entrava senão turbidez, motivo este talvez o causador da embriaguez que sentia ao ver o movimento das águas.

Ainda no parapeito da mesma janela cor marfim, agora dissipado entre o passado e o presente, lembrou-se dos tempos de canela fina; as gotinhas,naquela época, tão miúdas quanto ele, corriam sobre o vidro irregular, impulsionados pelo vento cortante que ardia-lhe as narinas. Corriam tão rápido quanto o possível, para juntar-se a outras menores ainda e metamorfosear-se em manchas aquosas de tamanho notório... O menino ficava fascinado ao olhar qual molécula chegaria primeiro ao meio comum, e se juntaria... A primeira gotinha, a segunda gotinha... A terceira era ele. Tão veloz quanto podia, escorregava por entre as frestas da janela, ávido por inundar-se em conhecimento, em magia e encanto pela vida.

Hoje, não se entendia... Era oceano profundo, era maremoto de areia que confundia-lhe os sentidos, ditando erroneamente seus caminhos e transbordando sua mente de fatos secos. Não podia ele voltar a ser criança? Queria poder sentir novamente a sensação de contentamento consigo mesmo, e ao mesmo tempo vontade de explorar o desconhecido. Queria não se perder na mancha d’água que era sua vida de olhar pernas bonitas, beijar batons caros... e nada. O vazio impregnava-se cada vez mais por todo seu ser, fazendo com que a foz de sua mente desaguasse em sua alma desejos esmaecidos, sem cor ou força para lutar contra a corrente.

Passou o dedo pela superfície do vidro; a água lhe escorreu pelos dedos fugindo da seca. Ele, tão lindo e tão nada, percebeu que sua vida escapava-se dela mesma, procurando outros canais para correr... Colocou novamente os dedos no vidro e pressionou-os contra a boca, engolindo a constatação.

A tempestade dentro de si começaria logo.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Mesa Farta

Mais uma noite de jantar em família. Corpos miúdos, obesos e ora alongados circundam a mesa forrada com pano listrado, arrebatada de comida, copos e mentiras.
O pai, um homem de beleza clássica, terno engomado com botões de ouro; sapatos perfeitamente engraxados e olhos inexpressivos. Sua boca parecia feita de pregas falciformes que desciam até o início do queixo, coberto por uma camada fina e quase imperceptível de pelugem ruiva.
As crianças eram duas. Um menininho delicado, frágil e aparente, com olhinhos bolinhas de gude e bochechas de morango maduro; seu cabelo liso e louro descia por entre o chapeuzinho cinza com botões de ouro, combinando com os do pai magricela. Seu comportamento mostrava uma criança abatida, de alegria enrustida e sedento de fala, de palavra e ação. A menininha, por sua vez, era espontânea; agia com típica infantilidade masculina, com trejeitos masculinos e vocábulos do mesmo modo. Para disfarçá-la, penso eu, da sociedade cheia de dedos, sua mãe colocara um laço rosa que se postava protuberante no topo de sua cabeça clara.
Por fim, sentada na frente do homem barba ruiva, estava a mãe-esposa. Seu rosto deixava explícito o quanto de dinheiro já investira em cremes e maquiagens de reboque, mas, ainda assim, olheiras desciam por debaixo de seus olhos pequenos, feito leques japoneses. Era corpulenta, não chegando a ser gorda. Sua roupa, também impecavelmente engomada, ornava com a cor do batom que fora pesadamente depositado em seus lábios crispos, e mais tarde seria impresso no copo de cristal.
Após a chegada de todos, o chefe da casa começou a oração. Seus olhos se fecharam forçadamente, para seguir o protocolo e ensinar aos outros como se fazia. O filho tirou seu chapeuzinho, e acompanhou os movimentos do mestre sem vontade alguma. Papai-botões-de-ouro cuspiu rapidamente palavras secas e desacreditadas e ao sinal do “Amém”, corpos despencaram nas cadeiras de mogno polido.
As crianças – com as mãos falsamente lavadas – davam chutinhos uma na outra por debaixo da toalha e a esposa-mãe com cara de quem nem comeu ainda e já não gostou, começou a servir a refeição.
Uma, duas garfadas, um gole de silêncio azedo... e um arroto. Todos olham; olhos de contestação, opressão e ao mesmo tempo indiferença, para a criança ao lado. A menininha com laço enfeitado na cabeça e dente podre solta uma lágrima, como que em resposta aos olhares compreendidos, e rapidamente todos voltam a atenção aos pratos. Sim, não precisam de explicações ou argumentos, a menina chorara... Tudo estava bem.O irmão da menininho, porém, era o único que compreendia. Sabia a revolta que crescia ao fazer-se próprio calar.E ah... Tanta coisa tinha ele a falar!
Se ao menos pudesse abrir um hiato na refeição (único momento do dia em que todos estavam ao menos fisicamente perto um dos outros) e dizer tudo que vinha se acumulando. Queria falar, desabrochar... “Saberia papai que gosto de flores? Flores são belas delicadas e sutis! Sutis, mas com uma presença incrível, capaz de colocar mulheres ao chão em suspiros sonhadores. Ah papai, queria ser uma flor; que exalasse cheiro doce e amadeirado, envolvente aos olhos, à boca e à mente...”, pensava o menino todas as noites ao redor da mesa que tudo ouvia.
Mamãe dos leques infindos queria também questionar. Questionava sua vida vazia de tricotar pensamentos descartados, de lavar roupa suja dentro do seu ser sem poder colocá-las no varal, pra fora da janela. E ah, como sentia falta do sol... Do sol a queimar sua carne flácida e intocada, inflamar-se de vida estelar. Sentia falta do toque, de amar aqueles olhos ruivos e magricelos, e do amor inexpressivo penetrando por todas as partes de seu corpo; sentia falta de aceitação...
A menininha, ainda que nova, também se comovia. Via como se o mundo não entendesse seu modo de ser; não gostava de laços e vestidos; achava-os meros acessórios que não adiantam a vida de ninguém, e que adornos dessa estirpe poderiam ser dispensados, uma vez que atrapalhavam na hora de brincar de pique. Quanto às flores, só gostava de seu irmão. E ela gritava para si “se um dia meu irmão for uma flor, eu poderei ser um cometa! O cometa mais ágil, brilhante e imponente de toda a galáxia! Sairei daqui, e não terei mais que usar laços ou tomar sopa de ervilhas... Odeio ervilhas, essas macilentas e verdolengas bolinhas. Cometas não precisam comer e ganham todas as competições de corrida! Quero ser veloz, quero sair daqui...”
A confusão se instalava alheiamente em cada um. Enquanto isso, goles a seco e mordidas no ar disfarçavam o que as almas não podiam mais. Até as batatas cozidas podiam sentir a tensidade, que chegava a inalar desespero.
Porém, por um segundo... Todos se olharam nos olhos. O cometa com laço na cabeça encarou seu irmão florido e perfumado; intimamente sorriram. A Mãe endireitou-se na cadeira, olhando a todos e finalmente aos olhinhos de ouro, que presenciava tudo com interna angústia.
Por que sua vida era assim, fechada e repressiva?, inconformava o capitão. Ele sentia que seus filhos sentiam medo do mesmo medo que sentia ele por sentir medo. Seu coração enjaulara-se em grades de ferro oxidado, e a chave se perdera entre as vísceras pretas do seu corpo. Queria poder pedir desculpas a seus amores pela metamorfose de sua alma... Queria brigar com ela por tê-lo transformado em um pedaço de carne branco e passivo, cujas remotas emoções permaneciam coladas em teu coro duro. Queria, queria tanta coisa... Porém calava. Sua vida estabilizada o inflava de insegurança para dizer o que realmente pretendia, e seu medo, advindos da infância e de vidas passadas de sentar-se em mesa muda, o aconselhava que o melhor era assim deixar.

Outro gole de tomate seco, uma mordida de suco laranja. Um último olhar de silenciosa aceitação.

...E nada (sempre e nunca) se fala; a atenção volta-se novamente para os pratos e escuta-se só o tilintar das vidas de porcelana batendo umas nas outras, esperando que a outra quebre e manche a toalha da sagrada comunhão.