sexta-feira, 11 de junho de 2010

Exorcismo - Ato VII


Estava no meu quarto, e em minha visão periférica, aquela barata totalmente desnecessária apontava as anteninhas para mim, roendo o que restava de útil no meu quarto úmido.
Eu já a expulsara de minha vida tantas vezes... mas ah, ela não entendia! Não poderia também, devido sua condição pré-determinada de asqueroza barata... A culpa era minha, então?...
Como eu, ser racional, fui me apaixonar por um serzinho quitinoso? Que entra sem pedir, que bota medo, que confunde as pessoas (você nunca sabe pra onde as baratas vão)...
Agora que o animal me conquistara, eu percebera sua inutilidade em minha vida. Eu nunca precisara de baratas, não seria agora que...
Estaria eu me acefalizando também? Tornando-me burra, jumenta, sem razão e, por fim... Barata? Não, não podia ser! Precisava me livrar de uma vez por todas daquilo.
Eis que me recordo do veneno guardado na última gaveta do meu quarto. Já o deixara lá em ocasião do serzinho aparecer denovo para me lembrar de sua irritante existência.
Mas o veneno nunca funcionava, e eu não entendia...Já havia matado tantas outras baratas, mas essa sempre acabava voltando, ora ou outra. Tanto tempo perdido tentando entender os motivos e os sentimentos daquela coisinha marrom; não dá. Baratas não são para serem entendidas.São metamorfoses de outros bichos mais bonitinhos, e entram em nossas vidas para causar transtorno, fazer bagunça, deixar rastros e mau cheiro.
Aquela deixara os maiores rastros possíveis em mim, em minha cama, em meu corpo e sentido... Já não havia por que dar outra chance.Nunca houve...
Andei lentamente pelo quarto e peguei o veneno inútil na gaveta; num reflexo de tempo, girei na direção da maldita e acertei-a bem no meio da fuça pequena. Ela tonteou, como previsto; ficou um tempo inativa e, após dois ou três minutos, começou a se mexer novamente, mostrando que a batalha não havia sido vencida. Como não bastasse, veio largamente parar sobre meus pés, preguiçosas... Como que pedindo redenção.

A ação veio de dentro de mim.

Pisei com força naquele corpo miúdo que mal tanto já havia me causado. Girei o calcanhar para certificar-me de que suas entranhas ficariam devidamente presas no meu sapato, e que suas impressões macilentas ficassem precisas no chão branco. Na hora, senti-me fraquejar, vacilar os joelhos e suar o rosto; um arrependimento enorme tomou conta de mim, tão grande e tão forte que tive vontade de chorar. Afinal, aquela miseravelzinha fizera parte de minha vida... Agora,era um bolo de vísceras fedorentas e patas amassadas.
Mas depois, senti alívio...

Enfim, eu poderia ter uma vida normal; enfim, eu poderia andar pela rua, cruzar esquinas e bueiros sem a preocupação de me encontrar com aquela que, por mais insignificante e claramente odiada por todos, havia feito uma revolução em mim. Havia mexido em meu ser, bagunçado a minha dor e, agora, não era mais do que simples barata apanhada. Mera lembrança de vida pausada. Paixão apodrecida, amortecida e esmagada.

Para quem por tanto tempo brincou de ser gente, e no fim saiu voando da minha vida feito barata.

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